quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Uma Estória Para As Forças em Combate no Rio de Janeiro

Outra História Sobre Hanisch.

por Mariel Reis

Hanisch era um homem jovem. O futuro não lhe passava pela cabeça, a não ser como uma leve sombra, mas sem causar incômodo. Trabalhava em um sítio como jardineiro. O espírito afeito à beleza rendia-lhe elogios, devido ao bom gosto com que mantinha seus canteiros. Não se inquietava com os problemas, então nada lhe turvava o caminho.

O sítio em que trabalhava era uma propriedade antiga na vila. A severidade do proprietário era admirada e temida e todos se espantavam porque a natureza cordial do jardineiro nunca havia se chocado com o temperamento agressivo de seu patrão. Todos louvavam a paciência com que o jardineiro se conduzia, desviando-se dos entreveros e sabiamente concordando com aquilo que o destino lhe reservara, mesmo que avaro.

O pendor artístico de Hanisch era observado com desprezo pelo proprietário do sítio. Quando seu jardineiro não estava por perto, procurava destruir-lhe o capricho, como se aquilo representasse uma afronta pessoal a ele, como se aquela beleza não pudesse pertencer-lhe porque estava apegada ao interior daquele seu serviçal.

Quando Hanisch voltava ao trabalho não deixava de perceber que todo o serviço feito na véspera estava desperdiçado.

O patrão culpava a sanha dos cães que tinha: quando soltos à noite, perseguindo algum animal de toca, reviravam a terra. A conversa se encerrava com esses argumentos, porque logo o jardineiro voltava silencioso ao trabalho, desconfiando que a verdade não estivesse metida nas palavras do seu patrão.

Os dias se passavam sem que nada interrompesse o ciclo estranho de destruição que aquele homem submetia às flores, experimentando um prazer doentio em ver seu empregado refazendo, com esforço, a beleza do jardim. Talvez a beleza que habitasse o interior do seu serviçal esplendesse de modo tamanho que o cegasse.

Como ele pode ser habitado por tamanha harmonia? As respostas lhe faltavam.

Hanisch recomeçava seu trabalho certo de sua inutilidade. Mas precisava do emprego e, apegado que era ao jardim, não se cansava de envidar esforços para recuperá-lo. E por longos dias reconstituía-o parte por parte. Comprava sementes, adubos, novas ferramentas, tudo consentido pelo patrão que não cessava de vigiá-lo.

“As mãos dele - o proprietário arriscava em frenesi - sim, suas mãos, são delas que surgem à beleza do meu jardim”.

Passou a espreitá-lo, seguia-o com cuidado, dando a entender que apenas se interessava pelo trato com a terra, mas não desgrudava os olhos das mãos de seu jardineiro. Parecia saído de um conto moral oriental a sua história, porque sua intenção era aprisionar a beleza para que tudo se parecesse com o seu intimo sombrio e desértico. Espreitava as fraquezas de seu empregado, vendo nele o pendor para a bebida.

Estreitava os laços com Hanisch, como se pudessem patrão e empregado ser camaradas, sem que nisso se intrometesse a diferença entre eles.

Certa noite chuvosa, impedido de ir para sua casa, porque a região onde vivia alagava, pediu ao seu patrão para ficar por ali, porque temia ser levado pelas correntezas caso se arriscasse a travessia. Nisto, a idéia que se arquitetava no espírito do patrão veio à tona, encontrando ressonância em seu íntimo. Chegara a oportunidade de livrar-se daquelas mãos que construíam com ainda mais beleza o mundo ao derredor de si.

“Sinta-se à vontade” disse o patrão, já a caminho da cozinha, em busca de uma bebida forte para os dois. Sabia da fraqueza de Hanisch, e não se pouparia de explorá-la.

Conversaram até altas horas sobre tudo o que dois homens podem conversar, sem nenhum tipo de censura. Cada um contou ao seu modo como viera dar ali naquela existência e o modo como se sentiam.

- Não me sinto confortável em fazer-lhe confidências dessa natureza, mas estou aqui com um irmão – disse o patrão.

Comovido, o jardineiro não tinha palavras para agradecer a confiança depositada em si e não se furtou em contar passagens pouco conhecidas de sua trajetória por essa terra, onde se misturavam o terrível com o milagre.

Dormiria no barracão onde estavam guardados os sacos de sementes e ferramentas, nos fundos da propriedade.

- Hanisch, como pode ter a beleza escolhido você como morada? Explica-me se é assim o tempo todo? Se tudo o que você toca floresce desta maneira como aqui na herdade.

A sorte parecia lhe ter reservado para isto, começou o jardineiro, e talvez isso fosse o único bem que ainda o destino lhe reservara sem golpeá-lo com uma traição. Estas palavras pareciam ter alcançado algum lugar dentro do proprietário, porque se via em seus olhos um brilho úmido embaçando-lhes. Como poderia também se atribuir isso ao efeito da bebida.

Vou me deitar, disse. Levantou-se cambaleante, apoiando-se nos móveis para encontrar a saída da casa. Lançou um último olhar ao patrão para saber se este ainda precisaria dos seus serviços, porque, nem mesmo neste momento, a consciência não o deixava em paz em relação as suas obrigações como empregado, mesmo que estivesse adormecido pelo efeito embriagante do álcool.

- Pode ir se recolher. – disse o patrão, sem voltar-se para ele, Hanisch, que já sumia nas sombras do quintal.

Aquelas palavras alcançaram dentro do patrão um lugar que pouco visitava, mas, quando algo era dito assim de modo tão sincero e puro, transportava-se por inteiro para essa região, ficando absorto em sua constatação de degradação pelo poder e pelo domínio.

Nas sombras, Hanisch arrastava seu corpo repleto de pecados. Porque não se importava em contar mentiras como aquela que a sorte o havia escolhido; muitas das vezes aquilo não passava da sombra da verdade e desta maneira, manifestando-se assim, agradava ao ouvinte que eventualmente lhe escutasse sobre o percurso nessa terra. Lembrava-se das dificuldades e das surras dadas pelo pai até aprender o oficio, as privações a que era submetido quando malograva a plantação pela qual estava responsável. Pensava em seu patrão, diluído entre a sombra e a distância, que ficara meditando sobre suas palavras, tomando-o por tolo.

Na noite se ouviam os ruídos dos animais, um vento sibilante correndo a copa das árvores, as nuvens amontoando-se sobre as montanhas longínquas como indicativo de tempo ruim, atestavam que a chuva não cessaria.

As mãos entorpecidas mal abriam caminho através da porta. O barracão não tinha iluminação de espécie alguma, ajeitou um saco de adubo de modo a parecer o possível com uma cama, abandonando o corpo que principiava a suar naquele ambiente abafado. Não se preocupou em trancar a porta, porque caso o patrão precisasse procurá-lo, não encontraria impedimento, ficando a vontade para vasculhar o lugar.

Tudo estava silencioso.

Longe, as luzes acesas do casarão dominavam a paisagem. Não se vislumbrava o vulto do proprietário do sítio, mas, se examinássemos bem, poderíamos vê-lo: sentado em sua cozinha, meditativo.

O sono investia lento como um pequeno exército pesando sobre as pálpebras Hanisch. A dormência nos músculos entrechocava-se com as visões da vigília, dançavam demônios sobre as prateleiras, insuflando-lhe desejos e idéias reprováveis. Por que, Hanisch, você não mata seu patrão? E corria por sobre as tábuas enlouquecidas, sumindo por uma fresta. O jardineiro custava a crer naquilo que seus olhos testemunhavam, julgando o delírio causado pelo efeito da bebida para a qual era tão fraco associado pela vizinhança do sono.

Logo cuidou para dissipar de sua mente a aparição, mas o demônio parecia insistir em seu propósito.

Hanisch desconhecia que o visitante demônio também aparecia para seu patrão, que em vez de ignorá-lo dava ouvidos ao pequeno ser das profundezas. Se ao jardineiro tentava com as riquezas do patrão, a cobiça deste repousava sobre outro aspecto de seu empregado: como poderia transferir aquele poder para si mesmo? Como? O demônio incitava-o a matar seu jardineiro e o resto se daria por conta de seus favores.

Por conta disso, o patrão levantou-se como hipnotizado, mas chegando as proximidades do barracão, viu que o jardineiro lutava aterrorizado contra as sombras. Percebeu que também ele era presa de visões como a que lhe tinha ocorrido. Algo se modificou em sua alma, porque em algum lugar ela existiria se condoendo da condição e sofrimento de seu empregado. E se ele resistia à mesma idéia proposta pelo demônio em matá-lo para arruiná-lo? Se aquilo fosse uma artimanha para que uma desgraça descesse sobre ambos? Hanisch observava um vulto vindo em sua direção, poderia ser o demônio, se ele tivesse se apoderado de algum bêbado das redondezas e intentasse matá-lo? Percorreu os olhos pelas ferramentas até deparar-se com a faca com que aparava os pequenos galhos das roseiras, manteve-a junto de si, como se esperasse para identificar melhor a ameaça.

O patrão do jardineiro estranhou a imobilidade em que estava seu empregado, julgou ser tarde demais, mas acautelou-se.

Então, quando já estavam a meia distância e prestes a se golpearem, refrearam seus ímpetos, impedindo que a tragédia se consumasse.

Ambos os homens riram, porque se confessaram a visita do demônio e seus motivos. Cada qual envergonhado por trazer no coração aquela mancha. Abraçaram-se e seguiram para o casarão, porque agora gargalhavam não de si mesmos, mas do demônio.

CIDADE MARAVILHA PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS

CIDADE MARAVILHA PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS
Trecho de correspondência entre minha mulher, Aurea e Diego Reis, amigo comum do casal.


"Com a Globo, me apavorei. Wagner Montes e programas sensacionalistas passando a operação ao vivo, é de praxe. Mas a Globo parar tudo, até novela, e dispensar o lucro das propagandas para mostrar "Tropa de Elite 3, ao vivo, sem ensaios e sem cortes" é pq a coisa está muito grave mesmo.

Estava aqui, tentando trabalhar ou estudar ou torcer para que tudo desse certo. Ou querendo sair daqui e virar a super Aurea e defender Mariel dos perigos vespertinos e madrugosos de Copacabana, ou correr para casa e abraçar o eu cachorro e me esconder debaixo da cama. Ou atirar em todos os bandidos da cidade para recuperar o meu direito milenar de cruzar a província e poder beijar e abraçar a minha filha, ajudá-la a fazer o dever de casa (como faço pelo menos 4 vezes por semana). Ou processar o Estado por deixar a cidade ficar nesta situação e atrapalhar o andamento do ano escolar de Isabelle (às duas da tarde a escola ligou pra dispensar os alunos pq às empresas de ônibus estavam recolhendo os coletivos e as professoras não iam conseguir voltar para casa). E como cidadã, eu me senti impotente e nostálgica.

Impotente pq não podia fazer nada. Não sou super heroína. Não sou senhora de meu tempo. Também pegaria um buzu para casa, que correria risco de incêndio como todos os outros da cidade. Não tenho peito de aço para passar pela Brasil e saber que chegaria incólume. Em meio ao caos, não tenho condições de proteger as pessoas que eu amo, a não ser por telefonemas solicitando para que tenham cuidado: Enrico, vizinho do Alemão; Verônica, vizinha do Cajueiro; Celinha, vizinha da linha amarela; vc e sua Odisséia diária pela cidade sitiada... Martins, cujo telefone (segundo a Telefônica) não existe...

Nostálgica pq quando eu era criança não existia isso de não ter aula pq a cidade está em guerra civil e os ônibus que levam os trabalhadores deixaram de circular. Era um Rio digno, e que ao que tudo indica, minha filha não usufruirá.

Aqui no trabalho, as pessoas que moram próximas às áreas de conflito foram dispensadas às 16 horas. Eu não moro, deveria sair às 20h, mas fiquei com medo da noite de uma cidade deserta. Às 17:30 eu me liberei. E fui pra casa. No caminho, vi o terror nos olhos das pessoas, na postura apreensiva. No trânsito caótico pq todos os veículos convergiam para qualquer brecha que se formasse, mesmo que o trânsito adiante estivesse livre. Mais tarde, já com o ônibus incendiado na Vargas, venci o medo de sair de casa para ir ao nosso KFC (aquele onde todos os Reis se reúnem depois de um passeio pelo Museu da República com seus príncipes). Ia comprar a janta do Mariel. Em frente ao restaurante havia um carro de polícia parado e um policial a paisana montava guarda na calçada, com um armamento pesado em mãos, andando tensamente para um lado e outro, apontando para quem se aproximava.

A paisana, Diego!!!! Poderia ser qualquer um, de qualquer lado. A postura neurótica, a gente geralmente atribui ao despreparo, aos amadores, a quem não tem treinamento e técnica repassados pelo Estado, ou está alterado pelo uso de substâncias ilícitas, ou seja: ao outro lado. A minha primeira reação foi dar meia volta e retornar para casa de mãos vazias. Isso passou por um átimo pela minha cabeça. Na mesma hora, graças aos céus, lembrei que Mariel além de passar o dia apreensivo com o caos da cidade ainda estava trabalhando pesado desde cedo, e assim iria adentrar a madrugada. Tem dias em que o leilão não permite que ele almoce, e ele já não toma o café da manhã, então...

Por amor, me enchi de coragem. Passei pelo obstáculo. Lá dentro encontrei um gerente tão apavorado quanto eu, dizendo que ia fechar o restaurante mais cedo não pelo caos, mas por conta do agente da lei que - aparentemente transtornado - às vezes apontava o armamento para dentro da loja. Tudo isso às 21h. Normalmente o expediente deles é até as 23h.

Quinta feira à noite, e a Lapa estava vazia. Cheguei às 21:15 em casa, via buzu, e sem transtornos. Para acompanhar o caos através do noticiário e me apavorar ainda mais.

Amanhã vou fazer prova na UERJ, colada com a Mangueira. Vou com medo. Domingo, o dia inteiro, tem mais. E no Rio Comprido, onde as coisas nunca foram muito calmas, e o caminho é repleto de comunidades que gostam de "protestar" com ou sem motivo. Este foi um dos fatores que me levaram a largar a faculdade de jornalismo. Estudava lá, e aos 7 meses e tal de gravidez - com um barrigaço de quase 12 - tive que me esconder DEBAIXO DO BANCO DO ÔNIBUS - durante um tiroteio na volta para casa. Incrível, Diego, é que eu coube!!! rsrsrs Enfim, vai ser uma prova de fé em Deus e de vontade de habitar o "Nosso Lar", despreendimento da matéria, crença no mundo espiritual, etc... rsrsrs

E vc e a doce Dri, onde estavam durante a confusão????

Melhoras para a minha irmã emprestada e beijs estalados para Igor, o fofo!!!

Pelamordedeus, cuidem-se todos!!!

Aurea"

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Por Um real



Finalmente saiu meu passe livre do metrô. Sem teto e sem perspectivas de mudança, titular de uma dívida de 2600 Reais e sem condições de viver os trinta dias do mês dentro da honra e glória do meu salário, e ainda impossibilitada de arrumar uma fonte de renda alternativa, decidi cortar despesas onde me pareceu mais fácil.

Pode ser uma esperança. Só o tempo dirá.

Desisti de fomentar o mercado gastronômico do entorno de meu trabalho, que esvazia o meu bolso diariamente. Tomara que sobrevivam sem mim. Quarta feira experimentei almoçar no restaurante popular da Central do Brasil. A coisa rola num esquema de bandejão: fila do lado de fora, sob o sol. Ou a chuva. Há uma fila para a galera em geral. Outra para os idosos e uma terceira para grávidas, acompanhantes, adultos com crianças e os deficientes.

Tem muito segurança, dentro e fora do galpão. Eles fariam uma fila a parte, como o povaréu que aguarda. Aliás o segurança da Supervia, ainda dentro da Central, me surpreendeu pela amabilidade. Além de me explicar direitinho onde era o restaurante – um pouco escondido para nossos padrões governamentais em que a propaganda é o objetivo do negócio – ainda me desejou um bom apetite. Quase me senti gente.

Não consigo identificar a ordem de prioridades, estou na fila das mulheres que esperam outras. Não por partilhar do estado interessante, mas pela maneira interessante com que Deus brincou com meu braço enquanto eu ainda habitava uma barriga, 30 anos atrás. Apresentei a carteirinha que atesta a minha bagunça genética e fui posicionada no lugar correto pelo guarda correspondente.

Atrás de mim uma gestante de pouco tempo, insegura pelo pouco tamanho da barriga, se seria aceita pelo guarda sem precisar lutar. Não me parecia fingimento. Falava com tamanha propriedade da maternidade, do alto dos seus supostos 20 anos incompletos, e de como as grávidas tem certas regalias no bandejão. Duas carnes, porções mais generosas, duas sobremesas. Era assim que pretendia alimentar os 4 filhos que ficaram em casa. Levaria a carne extra para dividir entre eles, para pôr sobre o arroz que faria ao chegar. E se preocupava com o horário, quase duas da tarde. A criançada devia já estar faminta.

Seu acompanhante aparentava nervosismo: “Eu não era para estar nessa fila. O cara ali vai chiar” – sempre de olho no guarda. E a moça explica que não, assim como criança não pode entrar sozinha, e tinham muitos adultos na fila em companhia das crianças, grávida também pode entrar com acompanhante. Pela fila especial. E o rapaz fica lá, mesmo que desconfiado.

São mais ou menos 20 minutos na fila, ao Sol. A grávida e o rapaz trazem ainda mais perplexidade para o meu dia. Descubro que o rapaz é um amigo. E que escaparam, não há muito, de um incêndio na casa em que viviam. Parece que são vizinhos. Ele, camelô, com muita raiva da guarda municipal. Ela diz que é melhor catar coisa e botar no chão para vender do que depender da boa vontade dos pais dos meninos. Menos de um, que salvou o filho dela de 2 meses – e que não era dele- do incêndio. Se arriscou no fogo, como se fosse o pai. “Eu tinha ou não tinha que dar um filho pra um cara desse? Esse eu fiz mas com muita mas muita felicidade” e olha para a barriga. Para em seguida dizer que o cara com quem tá agora sabe que o filho é do marido anterior. E que respeita, quis ficar com ela desse jeito mesmo.

Procuro não julgar, tento não julgar, quero não julgar. Mas a mente pensante é mais ágil do que as convenções morais. Filho é prêmio. Do alto da minha enrolação financeira, sem perspectivas de solução, mesmo com renda acima do que vejo ao meu redor e apenas uma filha para criar, é praticamente impossível frear o raciocínio. O cara é humano, decente, ético, honra a calça que veste e o fato de ter cérebro, coração, livre arbítrio, razão, sentimento, coragem, força, etc, etc, etc, e por gratidão recebe, como a um presente, um filho??? A quinta boca onde não se alimentam nem três nem quatro???

È outro padrão cultural. Entendo melhor meu marido, a cobrança que me faz e que amaria atender. Mas não há condições financeiras, físicas e nem morais. Não temos para a gente, os três da família, uma meio criada com a avó que provê parte de seus caprichos infantis. Como inserir mais um nessa ciranda de faltas?

A gestante continua a se abrir com o amigo. Conta que deixou um dos maridos porque ele tirava 130 Reais por semana no Saara, e o que ela ia fazer com 130 Reais por semana? A criançada precisa comer, vestir, calçar. O da barriga precisa de roupa e fralda.

Fico sem entender. Mas também o papo não é meu. Bisbilhoteira, apenas escuto.

A fila anda, entrada liberada. Como não conheço o esquema, acompanho o que fazem os habituées do local. Parece a entrada de um clube do subúrbio no início dos anos 80: dois guichês com roletas grandes e bilheteiras numa caixa de vidro. Nas paredes azul Royal a placa informa que a refeição servida tem cerca de 1400 calorias. Acima da roleta uma TV LCD 19 polegadas informa o cardápio, apenas a opção de carnes. Ou salsichão ou frango. Gosto de frango. Ainda nos primeiros passos, todos param. Um segurança enorme cercado de mais três explica par os companheiros que expulsou o cara da rampa porque ele tinha mandado todo mundo ir se f* e tomar no c*, e o cara se defende dizendo que todo mundo ali estava esculachando, porr*.

Imediatamente olho no entorno e percebo que, a despeito da quantidade enorme de seguranças, não tem detector de metais. Por uma fração de tempo, tenho medo. E parece que não só eu. As pessoas com crianças também tentam proteger os pequenos com o corpo, afastando-os da confusão. Não tenho tempo de gelar, a caixa manda a galera se adiantar para passar a roleta. Depois de uma avó com três crianças, dez reais e seis de troco lá vai minha moeda para a gaveta exposta, repleta. Tio Patinhas me vem à cabeça com a imagem. Sei que o custo de manutenção do programa supera em muito a arrecadação, mas a féria acumulada tem de fato um quê de riqueza, ainda que aparente. Muitos dinheiros juntos.

Acompanho o grupo e continuo ouvindo, agora já não sei se tão involuntariamente assim, a conversa da grávida. O acompanhante comemora, diz que sempre vai colar com uma amiga buchuda na hora do almoço, mesmo que precise pagar a dela. Comentam que bom mesmo é de manhã, quando é mais barato e mais vazio. Estamos em uma fila dupla. A da direita se divide em outras duas, já para se servir em um salão branco que dá acesso à área de acomodação metade vazia. Tenho tempo de ler que é proibido retornar para pegar suco, sobremesa ou qualquer coisa que tenha esquecido de botar na bandeja. Não é um papel simpático aquele colado na parede. E o segurança que evita as tentativas de retorno também não.

A fila da direita, onde estou, um segurança manda seguir em frente. Estamos em um corredor de 2x3 azul royal como a entrada. Os idosos se aproximam; devem ter sido a leva posterior. E fazem algazarra. Novamente, estamos em fila dupla. A grávida demonstra conhecer a lei, e comenta que uma colega conseguiu o aluguel social por causa do incêndio. O amigo diz que ele mesmo não. Que foi na secretaria, e que era a maior burocracia, que tinha que provar que o incêndio aconteceu e que ele morava lá. Acabou desistindo. A grávida diz que é para ele correr atrás. Que passou na Globo, no Wagner Montes, que não falta é mídia sobre o assunto. E se ele não conseguir achar o jornal velho, era só ir no Corpo de Bombeiro, porque lá tinha o registro do chamado e da ocorrência. Depois é só levar umas testemunhas de que ele morava lá para juntar no processo. E que ele ia conseguir. Se a fulana conseguiu, é claro que ele consegue.

O segurança conduz a fila para a área branca, onde tem dois balcões de refeição. Me perco da grávida, vou para o lado oposto.

O prato é de vidro transparente, mais limpo do que de muitos restaurantes a quilo que costumo a freqüentar. Está quente. Ponho sobre a bandeja de inox, para meu espanto, muito bem lavada. E leve. Mais confortável do que as que as costumo a recusar a 10 reais trezentos gramas. Tenho sede, torço para que o suco seja maracujá ou caju. A um real ou não, é o único de que eu gosto. Ou ainda para que haja água para acompanhar o rango.

Vejo que as porções são de fato generosas. È a área das prioridades, e está mais cheia do que a anterior. Tenho fome, e isso é raro para hora em que almoço. Peço pouco feijão. Vem 10 caroços e um copo de caldo. Peço mais, vira uma sopa. O rapaz deposita agora o arroz. A aparência é uma coisa intratável. Escolhi a fila errada, não tem frango, só salsichão. Digo que não gosto, então o que faço? Não pode fazer nada. Não pode ir para a fila em frente, pegar frango na outra baia. Chateada, por estar faminta e só ficar na sopa de feijão com arroz, nem percebo que passo direto pela sobremesa. Lembro que não posso voltar. Há um segurança que acompanha a fila. Paro para saber de que é o suco: acerola. Minha salvação, não pela acerola que não gosto e não vou beber, mas pela salada de alface, cenoura e pepino. Pego uma porção.

Difícil mesmo vai ser achar um lugar para sentar.

Encontro um lugar de costas para a rua, como de costume em qualquer restaurante. Invejo o prato da velhinha em frente, cheio de frango. Tenho impulsos de filar. Por sorte, me controlo. A velhinha conversa animada com outra ao seu lado. Apesar da intimidade, parece que acabaram de se conhecer. “Onde você mora?” “Na Praça Seca, em Jacarepaguá. Como não pago mais passagem, eu aproveito para vir almoçar aqui”.

A da Praça Seca se despede e sai. A outra grita para uma terceira, que já estava saindo ”Menina, você não me viu não é?” Ela obedece ao chamado, e vai conversar com a amiga, se posicionando atrás de mim. “Quando deu o lugar eu tentei te avisar, mas você nem viu!”. “É, mas agora eu já acabei.” “Não, foi antes” “Outro dia a gente almoça junta. Eu tô sempre por aqui”. Aqui as amizades se constroem como em qualquer bar. È também um espaço de sociabilização.

Depois que a senhorinha sai, viro de lado e vejo dois garrafões perto da porta, junto a uns copos descartáveis. Me empolgo, achando que é água e vou me servir. Estou perto da porta giratória, é chá e café. Continuo comendo minha sopa de feijão com arroz a seco. Não mais do que umas 8 garfadas. Está gostoso, mas como eu estou com sede, não desce. Vou embora e largo a bandeja na mesa, conforme reza minha formação socialista, para ajudar a gerar um novo emprego, o do cara que vai recolher a bandeja dos distraídos. Levanto, dou dois passos. Mas o remorso me corrói. Um projeto tão bonito, tão importante, não pode se tornar ainda mais custoso. E se todo mundo decidir fazer isso, onde o pessoal que está chegando vai sentar?

Como não faço há 12 anos, desde que assisti à palestra do MST sobre educação e capitalismo, levo minha bandeja completa à área de recolhimento. E me sinto bem, como se colaborasse de alguma forma para que as coisas dessem certo. Quase esqueço que vou sair dali para negociar minha dívida com o banco, torcendo para que aceitem o que de fato consigo pagar sem passar necessidade, mesmo sabendo que é pouco para os padrões bancários.

Quase na porta giratória, toca o celular. Não quero atender exposta de cara para a rua numa área perigosa da cidade, então me viro e caminho em direção á área de nutrição, aquela do segurança que toma conta da fila. Fico no limiar, não entro, mas o segurança me olha feio e faz um gesto de não para mim. Mostro o aparelho e atendo o telefone. Era meu marido, me repreendendo por estar ali, ainda mais sozinha. Mas eu sempre como sozinha, só variei um pouco o restaurante. “Então vc vai ter que escrever esta história, porquê essa experiência eu ainda não tive.”

O testemunho está aqui. Espero que sirva de pagamento ao que tenha passado na sua cabeça naquele momento de preocupação.

Com amor,

Aurea


PS: Saibam que, dois dias depois, ainda sonho com o frango que não comi

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Estranhos Hábitos

É muita coisa para dizer, é muito tempo de silêncio para remediar.

Nesta quinta vi a placa diante do prédio; vende-se cobertura. DDD 22.

Tremi de emoção. Era o telefone esperado? Pode ser de imobiliária em outra cidade. Pode ser que não.

Anotei, pensei em ligar. Seria bem vinda?

Poderia fazer uma proposta.

Hesitei, e muito me doía a idéia de que os laços com aquele pedaço de terra seriam desfeitos em definitivo. Significaria o fim da esperança de esbarrar com essas pessoas queridas perambulando pelas ruas do bairro, um dia desses.


Quando quase decidida a ligar e negociar, alentada por um espaço exclusivo para o marido escritor dar assa aos seus contos, me bate na cara o chamado da realidade. Estava numa banca de jornal no largo das 5 bocas, acompanhada pela florzinha mais florzinha do meu mundo - e devoradora de livros, revistas e afins. Civilizadamente, a florzinha se encantava com um exemplar da Disney, e folheava, enquanto a mãe castradora e intolerante dizia para aguardar o dia 10, o bendito das notas que entram na conta, visto que era fim de mês e a dureza batia à nossa porta, e os 10 reais fariam falta. E a dona da banca, grosseira e insandecida, começou a gritar que era proibido folhear, pq se não vendesse quem pagava era ela, e ela estava ali para ganhar dinheiro, e não para ter prejuízo.

Tem horas em que os brios de mãe se misturam com os brios capricornianos. E com os brios de cidadania e civilidade, absorvidos no paraíso de Santa Teresa, local abençoado do Rio de Janeiro onde respeito é a palavra chave nas relações entre as pessoas locais ou estrangeiras. Enquanto a mulher gritava insandecida, eu ia lhe dando o dinheiro para pagar a revista (o dinheiro que eu não planejava gastar ali naquele lugar e hora com algo que poderia esperar por uma semana mais confortável, a próxima). E a pequena, sem a malícia que o crescimento nos traz, continuava a escolher outras revistas, as de 1 real, de pintura - agora auxiliada pela amável vendedora, adoçada pela nota de 20 e o troco de 10 que tinha acabado de dar.

Fui severa com a pequena:

- Belle, você não ouviu o que a moça disse? Não pode folhear as revistas. Aqui não pode ver antes de escolher, então você não mexe mais, ok?

E a vendedora, no maior relax;

- Não, mãe... Que é isso??? Deixa a menina escolher... Estas são tão baratinhas, dá para levar um montão... eu não me incomodo não...

Saí sem dizer mais nada, arrastando a pequerrucha. Do lado de fora expliquei:


- Filha, a vendedora não gosta que mexa. Não quero que você entre mais nessa banca, ouviu? Nem comigo, nem com o vô, nem com a vó, nem com o pai e nem com ninguém. Quando for para comprar, a gente vai para outro lugar onde possa escolher, tá?

Atravessamos a rua, rumo à calçada onde tem o sinal de trânsito. Imediatamente fechou, um ônibus parou e lá fomos nós. A mãe e a criança, sempre em linha reta, resguardadas pela luz vermelha. Ao lado do ônibus que estava parado graças ao santo sinal vermelho, um carro de passeio em alta velocidade passa a meio metro de nós. Zunindo.

Reclamo, apontando o sinal, e recebo o dedo médio do motorista como um pedido de desculpas. Às duas da tarde.

Assim acordei do devaneio, ainda que sinta muito e me doa o fato de sua família cortar definitivamente os laços com um local que até então me nutria a ilusão de termos eu e você em comum. Não quero passar a vida inteira imersa na falta de civilidade, não quero criar a minha filha num local em que a falta de respeito entre as pessoas passou ao lugar comum e já nem mais é notada. Não, não quero passar a minha vida inteira pagando para isso. A cobertura, famosa cobertura, é o único lugar de Olaria pelo qual nutro um carinho especial, porquê foi o único lugar do bairro onde vivi momentos felizes. Brincando, estudando e conversando com você. Tendo o frescor de participar da infância de Wallace. Um lugar em que eu via uma mãe amorosa e sensível, e aprendi que isso existia. E que a vida podia sim ser diferente e melhor.

Mas não, não poderia fazer uma proposta que coubesse no que a caixa econômica pode me disponibilizar para pagar pelos próximos 20 ou 30 anos, se o oásis de paz fica em meio ao deserto desumanizador em que o subúrbio se converteu. Ou teria sempre sido assim, e só agora, após um período no paraíso, é que meus olhos começaram a se aperceber de mais esta dor?

Não com o custo do meu tempo, meu 53 ou 63 anos, coexistindo com o que não edifica. Não.


Descartada a nostalgia, restava o número. Ligar ou não ligar, that's the question...

Vi no seu recado do Orkut uma abertura. Estou disposta a tentar.

Agora só falta a coragem .
Autora: Aurea Beart

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Amor Nos Tempos de Cólera

As histórias inusitadas podem estar bem a nossa frente. Conversando com meu sogro – Jurandyr Almeida – descobri sua militância no PC do B no período de exceção, lutando pela abertura democrática do país e um fato surpreendente surgiu em nossa conversa. Ele me revelou que durante uma passeata é que conheceu a minha sogra – Iracema Oliveira. Resolvi dividir a deliciosa história, devidamente ficcionalizada. Mantive alguns erros “históricos”. Na arqueologia Urbana devemos estar atentos a tudo.









Amor e Ditadura




Carta do leitor Jurandir de Oliveira para o concurso da revista Marie Claire sobre o tema: Encontrei o meu amor de maneira inesperada.


Naquele tempo eu era um rapaz sem pretensões. Trabalhava como bancário em uma agência no centro da cidade, torcia pelo América Futebol Clube e tinha preocupações com o país – era o ano de 1972. O Brasil vivia o auge da ditadura.



As perseguições eram comuns, o Comando de Caça aos Comunistas agia livremente prendendo e torturando inocentes em busca de informações sobre pessoas que conspiravam contra a segurança nacional; a Rua da Relação mais movimentada que nunca: um entra e saí de camburões carregados de rostos que não se veriam mais para desespero das famílias. Qualquer indício de uma reunião suspeita nos apartamentos era investigado e se constatado de que se tratava de assuntos políticos a complicação aumentava. A cor vermelha proibida expressamente por estar associada aos comunistas, socialistas e grupos afins.





Nisto encontrei minha primeira desgraça: a camisa do América não poderia ser de outra cor. Sugeri a mudança da cor do pavilhão do time pelo menos no tempo de exceção, mas viam nisto, pelo menos alguns dirigentes, o recado de que em algum lugar se resistia à violência praticada no país pelos generais trogloditas.




Isto me limitava a torcer com bandeirinhas tímidas, botons presos à camisa, para não entrar em cana como baderneiro. Já pelo pequeno relato se pode antever o que me aconteceu, mas descreverei por partes a minha desgraça e meu triunfo – porque através desse artifício obtive a proposta de redação da revista: Encontrei meu amor de forma inesperada.




Enquanto no trabalho, minha atenção não se desprendia do detalhe da cor vermelha, então tomava cuidado com qualquer realce que escapasse à minha inspeção. Certa vez um dos gorilas do governo me acompanhou com o olhar até a entrada do banco – o boton vermelho havia chamado à sua atenção, pensou ser a famigerada foice e o martelo, quando o exame terminou, já me encontrava dentro da agência, fora de perigo.



Em casa não me preocupava com a questão da cor – me sentia livre da vigilância das sentinelas do regime, andava à vontade como se nada pudesse me acontecer, imune ao ambiente hostil do país e com um ingresso para a partida de sábado no estádio do time em Mesquita.




Comecei os preparativos. Comprei um chapéu espalhafatoso e corneta. Encomendei uma camisa nova do América, guardada às sete chaves até o momento de vesti-la no sábado. A velha virou pano de chão. Comprei também um calção novinho em folha – tudo para que se o time tivesse um desfalque, o técnico me habilitasse para jogar pelo time. Estava uniformizado. Feliz com a perspectiva da vitória. A Taça Rio daquela vez viria. O sabor amargo da última campanha do time não havia sido esquecido pela torcida que protestou contra o presidente do clube que não deu à mínima na época sendo uma miniatura de Eurico Miranda – isso no quesito ditatorial.



O final do jogo com uma vitória que não convenceu, mas satisfez a torcida que saía do estádio com urros de "é campeão, é campeão!". Desviei-me da multidão, fui para o ponto de ônibus, seguindo sozinho por umas ruas que me levariam ao terminal rodoviário. Não me dava conta do tempo, pensando nas jogadas, criticando o futebol dos pernas de pau da última contratação, emendando o time com minhas interferências técnicas, julgando que só o futebol em um tempo como esse permitia ao povo extravasar as emoções sem que fosse tachado de manifestação política, que de alguma maneira o jogo ensaiava o problema social – isso em uma visão primária e esquemática – quando uma patrulhinha cruzou comigo.




Não era uma novidade a polícia estar ao redor do estádio, cuidando da segurança, evitando que os arruaceiros causassem confusão e escândalo. Entretanto, no olhar do policial havia um brilho diferente, quando me encarou da janela do veículo.




Resolvi não dar atenção ao pressentimento e segui em frente, pulando pequenas poças de água que começavam a se formar, devido à chuva que começava a cair. A patrulhinha voltou, sirene ligada. O policial saltou do carro vindo na minha direção, me fazendo inúmeras perguntas, porque não estava com os outros torcedores, que tipo de cara sai sozinho de uma partida de futebol, onde geralmente se deixa o estádio na companhia dos amigos.

E por que motivo eu havia escolhido logo aquele trecho deserto, repleto de casarões para ir à rua principal – e não segui com a multidão. Tentei explicar como pude, mas meus argumentos não eram fortes o suficiente para convencer o guarda. Fui recolhido à delegacia.




Lá me reuniram a um grupo de homens barbudos, bem vestidos, pareciam crentes, usavam óculos, fumavam muito, enquanto aguardavam a vinda do delegado para uma conversa.



Não me irritei, porque logo notariam a confusão, eu era um torcedor perdido no meio daquela gente.



A autoridade chegou com cara de poucos amigos, "uns vagabundos comunas é o que são". Tentei protestar, mas levei um tabefe para me manter quieto, porque vadio socialista só falava quando ele mandasse. Engoli as ofensas em seco, procurei me controlar para não piorar a situação.



O delegado interrogou cada um dos homens na sala, quando na minha vez, ele interrompeu súbito minha fala, para declarar: "Este vai dizer que é torcedor do América". E era exatamente isso que eu alegaria. "Juro estava no jogo que aconteceu a pouco". "Minha Avó também". "Levem eles para a ducha". Fomos conduzidos para um vestiário, lá estavam enfileirados policiais com o rosto coberto, com toalhas molhadas enroladas nas mãos. "É hora do banho, vai ajudar a relaxar". Cada um de nós teve que passar por aquele corredor polonês, levando bordoada de tudo quanto é lado.




Depois de sovados, achincalhados e reduzidos em nossa dignidade, o delegado achou por bem dispensar a todos. Aquela violência policial me marcou bastante, me impressionou tanto que minhas pretensões mudaram. Se antes temia tê-las, acreditando no rumo certo do país nas mãos dos trogloditas fardados, agora via que estava errado. Quantos inocentes não deveriam ter sofrido as humilhações que eu sofri. Os que saíram vivos, poderiam se considerar com sorte, somente com a moral arranhada, podendo recomeçar.




E aqueles que não tiveram nenhuma chance? O pensamento me perturbava a mente. Na semana seguinte, recomecei o trabalho no banco sem o mesmo entusiasmo. Não é que eu fosse alguém expansivo, mas percebiam minha alteração de comportamento. Naquele dia no almoço, fui ao diretório do PCB me filiar ao partido, justificando não só a camisa vermelha do América, mas a outros ideais superiores como a liberdade de homem zanzar sem destino pelas ruas do seu país sem ser tomado por vadio ou por comunista por estar vestindo a camisa do seu time de coração.




Freqüentei reuniões clandestinas, participei de passeatas, tudo isso incógnito, porque se no banco soubessem que havia me tornado comunista estaria perdido, seria mandado embora no ato, porque a orientação era que fossemos apolíticos por ser esta a filosofia daquela instituição. Em uma das passeatas do partido pelas vias principais da cidade, vi aquela que futuramente seria a minha esposa.



Naquele momento até a guarda montada parou de distribuir pancada para vê-la atravessando a rua acintosamente vestida com um longo vestido vermelho.



Ela parecia distraída, não notava o tumulto e os cassetetes cortando o ar; o arfar dos cavalos conduzidos por cavaleiros ferozes que defendiam a pátria contra a escória em que havia se transformado a juventude.



Ela desfilava com a cor incomoda, sendo ovacionada pelos militantes que viam nesse gesto uma ousadia que nem os camaradas mais corajosos teriam. Era uma santa marxista, beatificada pelos operários, canonizada por Engels e Marx, dirigida em culto nas internacionais em que os teóricos desvencilhavam-se de suas táticas para pedir-lhe o milagre da revolução para a libertação da massa dos seus espoliadores.




Encontrei o meu amor de maneira inesperada, reuni coragem para admitir. Livrei-me do cartaz com palavras de ordem para segui-la na avenida; os guardas não percebiam minha ressurreição, tomando meu ato como afronta, descendo a borracha na minha cabeça.




Não dei mais um passo, caí. A minha sorte foi ter desmaiado em frente à mocinha vestida de vermelho. Pouco depois ao acordar, ela me confessou que o policial não sabia o que fazer, se lhe deixava cuidar do meu ferimento ou descia a bordoada nela, porque moça direita não se metia com tipos como aquele estendido ali. Para não sair sem as marcas de guerra, levou uma bordoadinha para ter lembranças do tempo de chumbo, com cicatriz e tudo. Talvez no futuro - pensávamos - isto renda uma indenização boa, ríamos. Daquele dia em diante não nos separávamos. Mais tarde, depois de certo tempo de namoro, casamos. Tivemos uma filha. Hoje somos moradores do subúrbio da Zona da Leopoldina.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Estação Pavuna – Estação Samba.

O gênio é um homem discreto, caminhando pelas ruas do bairro. Leva nas mãos o cavaco. Ele olha as paisagens investigadas em suas canções. Desenrola uma idéia sadia com a rapaziada. Dá atenção aos tipos que ninguém pararia para ouvir. Acena para mulheres que ninguém ousaria cumprimentar. Sempre com um sorriso afável, convidativo, acolhedor.

Marcamos o encontro na Estação da Pavuna, na Praça Copérnico. “A meu jeito eu também construo meu sistema solar” sentencia Carlos Alberto dos Santos, sem saber direito que está filosofando. Atira ao redor uma melodia conhecida com seu instrumento, emendando com a voz:

“Agora/Lutar por você com palavras/ Pode ser uma luta muito vã/ Entretanto são muitas as manhãs/ E eu pouco para te amar”

Sabe que no amor as palavras têm pouca força para traduzi-lo em seu turbilhão e percebe que quem ama sempre se esgota na manhã seguinte para se reinventar no amor e na maneira que ele renasce para o outro.

Carlinhos – como ele prefere ser chamado – é um faz – tudo, “assim defendo os trocados para os guris”, mas mantêm uma sensibilidade e um rigor na composição que lembra os mestres como Candeia, Ismael Silva e Cartola.

Ele se constrange quando comparo seu talento “Não, esses aí são cobras, eu tô me criando, um dia chego lá”.


Não faz por menos quando na lista de suas preferências coloca nomes como Jorge Aragão e Martinho da Vila. Carlinhos, que teve a instrução escolar interrompida, impressiona com composições como esta:

“Nas ondas do mar/ Eu naveguei/ Na sombra do seu amor / Me banhei//A branca vela no horizonte/ A malha do meu jererê/ Pescador de alma insone”

Penso em como ele constrói as imagens de alguns sambas, ele parece adivinhar e completa “vem naturalmente”.

terça-feira, 30 de março de 2010

Agradecimentos Aos Dois Primeiros Leitores


Os dois primeiros comentários do blogue Arqueologia Urbana surgem de partes distintas do país. O primeiro, Waldecy, amigo de Vicente de Carvalho. Para quem não sabe onde fica, é só ficar atento às estações de Metrô, lá vai estar à plaqueta indicativa.

Vicente de Carvalho, conhecido como poeta do mar, parnasiano, não é lá muito lembrado nas rodas literárias hoje, mas já teve muita moral. Hoje o bairro dá guarita a esse meu amigo, versado em francês, com seus estudos realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Arisco, na arte do verso lança sementes, produz plantas reluzentes como sóis que dividem a manhã que se aproxima. Que xinfra, hein! Mas, a minha praia é outra.

Abaixo o recado do Wal (decy) que promete botar a boca no mundo e espalhar a boa nova:

"Parabéns! meu caro amigo desejo-lhe sucesso na empreitada.Já tinha ouvido falar desse tipo de resgate de personagens urbanas em Pernambuco e Ceará e Belém na forma de cordéis,tiras em jornais populares e gibis,mas nada como você está fazendo usando as poderosas ferramentas da internet.Vou ajudar a divulgar o blog.Boa sorte,sucesso e conte comigo."

Alessandro Garcia, gaudério, dá as caras também e faz finta. Escritor de primeira linha, militante pelo direitos dos negros, parceiro de apuros, como a boa moral exige, está na categoria de irmãozinho. Não se faz de rogado. Pinta, borda, escreve e joga. O jogo da vida não é para qualquer um, tem que ter ginga, malandragem e tutano. Esse meu outro amigo e irmão desagua seus sentimentos nas palavras reproduzidas abaixo:

"Sensacional, meu irmão.Que grande ideia. Parabéns pela iniciativa e pela genialidade.
Vai dar muito certo!Abraço!"

São muitos os torcedores. O publicitário Severo como prefiro chamá-lo, ao invés de Garcia ou Alessandro, dá suas notas. E se eles me parecem exageradas, não são injustas. Porque levo a coisa na raça, na dificuldade. Não amoleço. Bato a bola para frente